terça-feira, 11 de outubro de 2011

"Subir na vida"


Decidi colocar este excerto porque a ciência é mais do que a actividade científica. Os cientistas por trás do nome revelam muitas vezes histórias de um interesse extraordinário.

Esse é o caso do físico Richard P. Feynman. Passagens deliciosas sobre a sua vida podem ser lidas no livro "Nem sempre a brincar, Sr. Feynman!"

A passagem que se segue é, a meu modesto ver, sublime! Uma verdadeira lição de vida...



"Uma vez, na década de 50, quando regressava de barco do Brasil, fizemos escala por um dia na Trindade, e resolvi então visitar a capital, Port of Spain. Naquela altura, sempre que percorria uma cidade, interessava-me sobre tudo ver os bairros pobres – a fim de conhecer a vida ao fundo da escala.

Percorri demoradamente a pé as colinas, no bairro negro da cidade. No regresso um táxi parou e o motorista disse: – Eh, cavalheiro! Quer ver a cidade? São só cinco biwi.

Respondi: – Está bem. – E entrei no táxi.

O motorista arrancou logo, começando a subir a caminho de um palácio, dizendo: – Vou-lhe mostrar todos os sítios bonitos.


Disse-lhe: – Não, obrigado; isso é igual em todas as cidades. Quero ver a parte degradada da cidade, onde vivem as pessoas pobres. Já vi o cimo das colinas.

– Oh! – disse ele, admirado. – Tenho muito gosto em lha mostrar. E quando terminamos vou-lhe fazer uma pergunta, portanto peço-lhe que veja tudo com muita atenção.

E levou-me então a um bairro – deveria ter sido um projecto de urbanização – e parou defronte de uma casa pré-fabricada. Não tinha praticamente nada lá dentro. Estava um homem sentado nos degraus da frente. – Vê aquele homem? – disse-me. – Tem um filho a estudar para médico em Maryland.

Depois escolheu mais alguém dali para que eu pudesse ver como viviam. Era uma mulher com os dentes todos podres.

Lá mais adiante, parámos e apresentou-me a duas mulheres que admirava. – Conseguiram arranjar dinheiro para comprar uma máquina de costura e agora fazem vestuário para as pessoas daqui. – anunciou, orgulhoso. – Quando fez as apresentações, disse: – Este homem é professor, e o mais interessante, é querer ver os nossos bairros.


Vimos muitas coisas, e no fim o motorista do táxi disse-me: – Agora, Professor, aqui vai a pergunta: viu que os indianos são tão pobres, ou às vezes ainda mais, como os negros, mas conseguem lutar para subir na vida de algum modo – este homem mandou o filho para a universidade; aquelas mulheres montaram um negócio de costura. Mas a minha gente não passa da cepa torta. Porquê?

Disse-lhe, logicamente, que não sabia – que é a minha resposta a quase todas as perguntas –, mas não a aceitou, vinda de um professor. Procurei arranjar qualquer motivo que me parecesse plausível e acabei por lhe dizer: – Há na Índia uma longa tradição subjacente à vida, que provém de uma religião e de uma filosofia de milhares de anos. E estas pessoas, embora não estejam a viver na Índia, continuam a transmitir essas tradições sobre os aspectos importantes da vida – tentando construir para o futuro e apoiar os filhos no esforço – que lhes foram chegando ao longo dos séculos.

Prossegui: – Penso que, infelizmente, a vossa gente não teve oportunidade de desenvolver uma tradição tão longa ou, se alguma vez o fez, perdeu-a em consequência da conquista e da escravatura. – Não sei se seria verdade, mas era o meu palpite.


O motorista do táxi achou que era uma boa observação e disse que também planeava construir um futuro: apostara algum dinheiro nos cavalos, e, se ganhasse, compraria o seu próprio táxi e ficaria muito bem de vida.

Tive pena dele. Disse-lhe que apostar nos cavalos era uma péssima ideia, mas ele insistiu em que não havia outra alternativa. Boas intenções não lhe faltavam, só que o eu método ia ser o recurso à sorte.

Resolvi ficar por ali com as especulações, e levou-me ao local onde havia uma charanga a tocar uma música calipso óptima, que m proporcionou uma tarde muito agradável."

Excerto retirado do livro "Nem sempre a brincar, Sr. Feynman!"

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