quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A maionese

Sabe-se que água e azeite não se dão, não se misturam. Se misturarmos água e azeite, após algum tempo, a mistura separa-se em duas fases, a água em baixo e o azeite em cima. Será então possível que as moléculas de azeite e as de água estabeleçam uma ligação para formarem algo?

A maionese é feita a partir de gemas de ovo, vinagre e azeite. As gemas de ovo contêm bastante água na sua composição, cerca de 50 %, e o vinagre é constituído quase só por água. Então como podemos conseguir uma emulsão, a maionese, a partir de água e azeite? Para compreender este facto, nada melhor do que um divertido diálogo imaginário entre os intervenientes:

Vinagre - Chamo-me vinagre, nome que me vem directamente do meu pai – o vinho. Vinagre quer dizer “vinho acre” (ou vinho azedo) e, na verdade, eu mais não sou de que um vinho modificado por certos micróbios – as bactérias Acetobacter – que transformam o álcool etílico em ácido acético. Por vezes sou mal interpretado, porque quando “me chegam cá os azeites” é que se vê a minha acidez...  Mas sou um óptimo conservante; consigo impedir que os micróbios se desenvolvam nos alimentos.

Azeite  - O meu nome é azeite, e a minha mãe é a azeitona. A minha tristeza é que, para eu vir ao mundo, ela teve que ser toda espremida. Mas já se sabe que dar à luz nunca é fácil. Sou da família das gorduras (os químicos chamam-nos lípidos), tenho montes de ácido oleico e dou aos alimentos a possibilidade de ficarem mais macios e de serem cozinhados a temperaturas mais elevadas do que com a água. Por isso, ficam mais saborosos.

Vinagre - Alto lá!  Já me estás a insultar! Sim, porque eu sou mais água do que ácido; aliás sou mesmo quase só água. E também te digo que, com a água, os alimentos ficam mais saudáveis, mantêm os sabores originais e são muito melhores para as pessoas doentes. E, já agora, se há coisa que detesto é mesmo a gordura. Contigo não quero ligações, não tens nada que me atraia.

Azeite – Olha, meu caro, esse teu ódio é 100 % correspondido. Sempre que encontro água, junto-me logo às gorduras minhas amigas e fazemos uma roda onde tu não entras nem por nada.

Ovo – Que pena me faz ouvir-vos nestas zangas constantes! É que no mundo da cozinha nem há bons, nem há maus. Todos somos necessários e temos é que trabalhar em conjunto. Eu, como sabem, também tenho muita água e gordura (para além de proteínas e outras coisas que tais), vivo bem satisfeito e sou muito apreciado. Chamam-me para montes de pratos. Quem sabe se juntos não poderemos fazer uma associação deliciosa, bonita e útil? Eu tenho uma molécula – a lecitina – que penso que pode entrar em conversações convosco e tentar pacificar as vossas relações. Já tem feito bom trabalho noutras situações; é uma conciliadora nata, quase uma mensageira da paz... E tenho também umas proteínas nos ovos que fazem um trabalho semelhante e com bons resultados.

Lecitina – Ouvi falar no meu nome, chamaram-me? Ai, já estou a ver o que se passa. É mais uma vez o vinagre e o azeite a implicarem um com o outro. Isto das polaridades tem mesmo que se lhe diga; vocês são realmente imiscíveis! Mas eu sugeria-vos uma coisa. Sou assimétrica e tenho 3 braços. Não é que seja bonito, mas acaba por dar jeito nalgumas situações. E posso tentar estabelecer uma ligação com o azeite com os meus dois braços mais compridos e com o outro dava a mão à água. Outros familiares meus, os detergentes, já têm feito isto e tem resultado. Que dizem?

Azeite - À partida vou desconfiado, digo já. Sou como os gatos, desconfio sempre da água e como o vinagre é mais água que outra coisa... Não é coisa que me entusiasme, mas...

Vinagre - Cá por mim posso tentar, mas se vejo o azeite a juntar-se, gota a gota, sou eu mesmo que o atiro ao ar e, como é tão leve, vai por fora que é um mimo.

Lecitina – Bom, parece-me então que podemos experimentar. Que tal? Mas volto a lembrar, nada de grupinhos!

E foi assim criada uma associação perfeita, tão a gosto de todos nós… a MAIONESE!!!

Baseado em Guerreiro, Margarida; Mata, Paulina. A Cozinha é um Laboratório. Lisboa: Fonte da Palavra, Lda. 2ª ed. (2010).


domingo, 25 de setembro de 2011

Explorar o espectro visível

O dias nublados são inimigos da energia solar. A maioria das células fotovoltaicas reage apenas a uma parcela estreita do espectro electromagnético - e é exactamente essa porção do espectro que as nuvens tendem a bloquear. O problema pode ser resolvido com camadas de diferentes materiais (sensíveis às diferentes parcelas do espectro), porém, isso encarece grandemente as células.

Uma equipa da Ohio State University, liderada pelo químico Malcolm Chisholm, adoptou uma abordagem substancialmente diferente. Eles doparam um polímero normalmente utilizado em semicondutores — denominado oligotiofeno — com átomos de molibdénio e tungsténio. O resultado foi um material que gera energia quando exposto à radiação de comprimento de onda de 300 nm (ultravioleta) a 1000 nm (infravermelho). As células tradicionais, feitas à base de silício, ao contrário, respondem melhor a partir de 600 nm (cor-de-laranja) até 900 nm (vermelho-escuro). O novo polímero pode trabalhar numa faixa bastante mais alargada dado que apresenta propriedades de fluorescência e fosforescência.


A maioria dos materiais de células solares manifesta apenas fluorescência; a radiação solar visível incide no colector e excita os electrões a estados de energia elevados, fazendo-os retornar ao estado fundamental, emitindo luz. Geralmente, a fluorescência não é visível dado que o comprimento de onda da luz emitida corresponde a radiação infravermelha, ou então simplesmente porque a luz é fraca demais para ser vista à luz do dia. Alguns projectos de células solares reutilizam essa radiação libertada para aumentar a sua eficiência. Contudo, alguns electrões são de tal forma excitados que deixam de estar sob a influência do núcleo atómico que orbitam. São esses electrões que estão na base da corrente eléctrica gerada.

Molibdénio

No entanto, esses electrões não ficam livres por muito tempo — apenas trilionésimos de segundo. Eles podem voltar ao seu estado fundamental ainda antes de serem utilizados para produzir corrente eléctrica. Essa é uma das principais razões pelas quais uma célula solar não funciona com 100 % de eficácia.

O polímero que a equipa da Ohio State University desenvolveu apresenta também fosforescência, como alguns brinquedos que brilham no escuro. No fenómeno de fosforescência, os electrões mantêm a sua energia por muito mais tempo que na fluorescência e, assim, permanecem livres por mais tempo.

Tungsténio

Esse resultado é devido à dopagem que o material foi alvo. O tungsténio e o molibdénio são átomos metálicos que possuem muitos electrões disponíveis na banda de condução (em comparação com os electrões disponíveis somente no polímero). Além disso, as configurações electrónicas dos metais permitem que os electrões permaneçam por muito mais tempo fora da influência do núcleo atómico.

Baseado na revista Scientific American Brasil de Fevereiro de 2009.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Culinária criogénica


Desde a descoberta do fogo por parte do Homem que a palavra “cozinhar” pressupõe, grosso modo, o processo a partir do qual se sujeitam alimentos a temperaturas elevadas com o objectivo de alterar quimicamente a sua cor, sabor e textura.

No entanto, o advento da criogenia entregou aos chefs uma nova, preciosa e estimulante ferramenta – azoto líquido – para transformar a comida em divertidas e surpreendentes maneiras. Isto possibilita, entre outras coisas, escalfar óleo, esmigalhar queijo, fazer farinha de ervas aromáticas e ralar carne. Além disso, quem de nós não conhece o gelado instantâneo feito a partir de azoto líquido?

Azeite congelado

Durante muitos anos, a substância mais fria que os chefs podia utilizar nas suas receitas era o gelo seco (dióxido de carbono sólido), que sublima directamente em CO2 gasoso a – 78 ⁰C. Apesar do gelo seco possuir interessantes aplicações culinárias, o seu estado físico limita a sua utilização. Por outro lado, o azoto líquido ferve a uma temperatura muito mais baixa: – 196 ⁰C, aproximadamente tantos graus abaixo de zero como o óleo quente de uma fritadeira tem acima de zero.

Além disso, devido ao facto de o azoto líquido derreter antes de vaporizar, ao contrário do gelo seco, o azoto pode ser armazenado como líquido e, posteriormente, derramado sobre a comida, ou depositado numa tijela.

Azoto líquido

Pelo facto do azoto líquido possuir um quinto da viscosidade da água e uma tensão superficial muito baixa, este líquido flui rapidamente através das fissuras dos alimentos. Uma técnica que é utilizada para melhorar a confecção de hamburger's consiste em cozinhá-los em lume brando de modo a que a carne fique mal passada; mergulhar o hamburger em azoto líquido para congelar a parte exterior do mesmo e, por fim, fritar o hamburger a alta temperatura formando uma crosta castanha perfeita sem que o interior fique mal passado.

Deliciosos hamburgers

A velocidade é crucial para congelar alimentos sem danificar a sua textura. Geralmente, quanto mais rápido é o processo de congelamento, menor a dimensão dos cristais de gelo e menor o rompimento das estruturas celulares do alimento. Desde os anos 70 que os chefs têm utilizado o azoto líquido para confeccionar gelado com textura extremamente suave. Contudo, só recentemente é que os chefs começam a utilizar esta ferramenta para conservar alimentos bastante delicados, como por exemplo, o foie gras. Por fim, como a utilização do azoto líquido na culinária é ainda bastante recente, muitas novas técnicas estão ainda para ser descobertas.

Baseado na revista Scientific American de Agosto de 2011.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

As ventoinhas

Já se perguntou: Por que as turbinas eólicas têm três lâminas finas e as ventoinhas de tecto cinco lâminas largas?

As diferenças entre as lâminas das eólicas e das ventoinhas de tecto devem-se a diferentes critérios estabelecidos no projecto das mesmas: as eólicas são construídas para captarem vento em alta velocidade e gerar electricidade por indução electromagnética; as ventoinhas de tecto devem deslocar o ar a uma velocidade baixa, utilizando componentes baratos.


Para manter o baixo custo do gerador, uma eólica captura a energia do ar que se move rapidamente e gira com uma velocidade relativamente elevada para não produzir um ruído excessivo. Uma rotação lenta aumentaria o binário e exigiria componentes mais resistentes e caros no gerador. Esta conversão de energia exige uma lâmina altamente especializada. O desenho desta cria uma diferença de pressões (alta pressão de um lado da lâmina e baixa no outro) que faz com que a lâmina se mova. A razão da utilização de três lâminas depreende-se, basicamente, com a relação custo/benefício. Se se utilizassem duas lâminas, a estrutura dinâmica da eólica teria que ser mais complexa; se se utilizassem mais de três implicariam custos demasiado elevados para a criação da eólica.


Por outro lado, a ventoinha de tecto é construída para manter a ventilação de uma área reduzida, pela movimentação suave de ar. Os engenheiros procuram minimizar o ruído do aparelho a baixas velocidades e manter os custos de produção e, consequentemente, um preço de venda baixo. Neste caso, a eficiência energética não é a principal preocupação dado que se um ventilador de tecto comum trabalhar 24 horas por dia, isto resultará num consumo de 60 kWh em um mês. Por esta razão, estes ventiladores possuem lâminas que são dispositivos de arrasto de baixa eficiência; girar as lâminas inclinadas, empurra o ar verticalmente para fora. Lâminas largas e grossas são baratas  e funcionam bem como dispositivos de arrasto. Mais uma vez, a utilização de cinco lâminas depreende-se com o equilíbrio da relação custo/benefício.

Baseado na revista Scientific American Brasil de Março de 2009.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A história da hora de Verão


Por que muitos têm de acertar o relógio duas vezes por ano? Há quem ache um aborrecimento ter de adiantar ou atrasar o relógio. E muitos de nós nunca sabemos quando temos de fazer uma coisa ou outra. Mas como surgiu o horário de Verão? De quem foi a idéia?

Segundo a Encyclopædia Britannica, foi Benjamin Franklin, em 1784, quem sugeriu pela primeira vez criar um horário de Verão. Contudo, mais de um século depois, um inglês chamado William Willett fez uma campanha activa para efectivá-lo. Mas Willett morreu antes da lei ser promulgada pelo Parlamento.
 
O escritor britânico Tony Francis disse que Willett, um exímio construtor de Chislehurst (condado de Kent), estava a cavalgar numa manhã de Verão, bem cedo, em Petts Wood, quando teve a idéia da utilidade de fazer um ajuste nos horários. Ele reparou que muitas casas estavam com as persianas fechadas.

William Wilett
‘Que desperdício da claridade do dia!’, ele deve ter pensado. Começou a fazer campanha para aprovar um projeto de lei no Parlamento Britânico a fim de ajustar o horário. Simplesmente adiantar o relógio 20 minutos quatro vezes na Primavera e no Verão, perfazendo um total de 80 minutos, e depois atrasar o mesmo tanto no Outono permitiria às pessoas aproveitarem melhor o período de claridade na segunda metade do dia.

The Untiring Advocate of "Sumer Time"
Ainda segundo Francis, Willett escreveu num dos seus folhetos: “A luz é uma das maiores dádivas (...) enquanto a luz do dia nos ilumina, a alegria reina, as ansiedades amainam e reunimos coragem para enfrentar a vida.”

O Rei Eduardo VII não esperou a sanção do Parlamento. Fez vigorar o horário de verão em Sandringham, a sua mansão real de 7.900 hectares. Mais tarde fez o mesmo nas propriedades reais de Windsor e Balmoral. No entanto, o que finalmente convenceu os políticos a cederem e adoptarem o horário de Verão?

Horas non numero nisi aestivas
Eles queriam economizar energia durante a Primeira Guerra Mundial reduzindo a necessidade de luz artificial. Outros países aderiram logo à ideia por razões similares. Na Inglaterra, durante a Segunda Guerra Mundial adoptaram-se até mesmo dois horários de Verão. Isso permitiu uma diferença de duas horas no Verão e uma hora no Inverno.

Em Petts Wood há um monumento em homenagem a William Willett. É dedicado ao “incansável defensor do ‘horário de Verão’”. A inscrição debaixo do relógio de sol diz: “Horas non numero nisi aestivas”, que quer dizer: “Não conto as horas, a menos [que sejam] de Verão.”

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O berço de Newton


Muitas vezes utilizado como peça de adorno em escritórios, o berço de Newton é um dispositivo que demonstra empiricamente as Leis da Conservação da Energia e do Momento Linear. A invenção deste útil instrumento é atribuída a Simon Prebble que, em 1967, criou uma versão em madeira do instrumento cujo nome homenageia um dos grandes físicos, Isaac Newton.

Este instrumento é composto por um número ímpar de bolas de metal (normalmente cinco ou sete) suspensas por dois fios ou varas, de forma a estarem todas no mesmo plano. Ao puxar uma bola, o sistema funciona como um pêndulo. Contudo, devido à existência das outras bolas, a energia cinética da bola que está em deslocamento terá que ser transferida, através das bolas em repouso até à última das bolas paradas. Esta última bola terá de movimentar-se com o mesmo tipo de movimento induzido na primeira bola.


Todo o efeito verificado no berço de Newton deve-se às leis de Newton. O momento linear de um objecto depende da sua massa e velocidade. O momento total de um conjunto de objectos permanece constante quando a soma das forças externas que actuam sobre eles é nula. No berço de Newton, tal sucede quando as bolas estão alinhadas.

Quando as colisões ocorrem, as bolas estão alinhadas e as forças exercidas entre elas são internas – o momento linear permanece constante. O mesmo sucede com a energia cinética. Uma vez que todas as bolas têm a mesma massa, a bola oposta (e apenas esta, devido à conservação da energia cinética) inicia o seu movimento com velocidade igual à que tinha a bola instigadora.

Do mesmo modo, se duas bolas foram libertadas inicialmente, duas bolas irão reproduzir o arco no lado oposto do berço. Pode parecer que o movimento pendular no berço seria perpétuo. Não é o caso. A resistência do ar e o atrito retiram energia às bolas. Parte da energia cinética é convertida em som. Há perdas de energia por amortecimento devido à elasticidade natural das bolas. Tudo isto faz com que a amplitude do movimento diminua ao longo do tempo, acabando as bolas por parar. A duração do movimento depende do material das bolas. A preferência pelo metal deve-se à sua baixa elasticidade.

Adaptado da revista "Quero Saber" de Janeiro de 2011.

sábado, 10 de setembro de 2011

Os diversos ofícios da cura


Na Idade Média, qualquer um que ficasse doente tinha à sua disposição um vasto leque de “especialistas” que se gabavam de serem conhecedores da arte de curar maleitas. Nesta época os médicos com formação académica eram largamente ignorados na hora de escolher quem haveria de curar determinada doença. Recorriam-se preferencialmente a barbeiros, cirurgiões ou parteiras que, pelo visto, tinham um sólido conhecimento prático sobre a matéria. Porém, além da concorrência destes “habilidosos”, os médicos com formação académica da época eram constantemente ameaçados pela concorrência de charlatães, enganadores e outros arrancadores de dentes itinerantes. Sebastian Brant, em 1494, descreveu esta situação em A nau dos insensatos: “O doente busca a saúde. De onde ela vem, pouco lhe importa.”

Os doentes da Idade Média queriam, mais do que tudo, uma cura rápida, mesmo que dolorosa, pois a sua sobrevivência dependia disso. Estamos a falar de uma época em que sistemas de Assistência Social eram grosso modo inexistentes e, por isso, o trabalhador, qualquer que fosse a sua especialidade, tinha que ficar curado o mais rápido possível para ganhar a sua vida e não morrer de fome. A promiscuidade e a falta de higiene existente dentro das casas e das muralhas das cidades na Idade Média favoreciam o aparecimento de epidemias que se tornaram frequentes nesta época. Se, por um lado, a cidade tornava os trabalhadores mais livres do que no campo (porque tinham menos obrigações fiscais e menores obrigações laborais perante o governo), por outro, as cidades também deixavam os trabalhadores mais doentes.

Só no início do século XIV, com o crescimento das cidades, os magistrados começaram a estruturar um sistema de saúde propriamente dito. Ou seja, assim como a vida pública era regulamentada por leis comerciais e regras corporativas, os cidadãos também achavam necessário que a medicina fosse exercida apenas por profissionais.

As pessoas que eram consideradas aptas a realizar a actividade médica pertenciam a classes sociais bastante distintas. Por exemplo, no alto da pirâmide hierárquica, figurava o médico distrital que estava encarregado de cuidar do bem-estar da comunidade. Tratava-se de um doctor medicinae, ou seja, alguém que estudou os clássicos de medicina antigos ou os mais recentes livros árabes nas grandes universidades (Bolonha, Pádua, Montpellier ou Paris). Estes eram muitas vezes equiparados à nobreza.


Por outro lado, os médicos funcionários eram pessoal pago pelas cidades mercantes que se comprometiam a cuidar do bem comum, controlar as farmácias (para que elas apenas fornecessem remédios eficazes), regular os estabelecimentos públicos reservados para banhos (para prevenir a propagação de doenças), avaliar os pacientes e decidir sobre a necessidade de os levar para um hospício. Estes médicos serviam para que os grandes comerciantes das cidades mercantes pudessem mostrar que, assim como os reis e os bispos, também eles dispunham de um médico próprio.

Porém o ofício de médico trazia consigo pesadas desvantagens. Uma delas é que ele nunca poderia deixar a cidade sem autorização. Além disso, muito médicos morriam no exercício da sua profissão. De nada lhes valia todo o seu equipamento contra uma epidemia como a Peste Negra, por exemplo, que matou um terço da população europeia entre 1348 e 1352.

Para um médico da época, as doenças apareciam devido a um desequilibro entre os quatro principais humores corporais, e era sua responsabilidade reequilibrá-los. Por exemplo, para curar males do humor negro, o médico utilizava remédios considerados quentes e húmidos visto que se considerava que esse humor negro era frio e seco.

Os exames à urina e ao sangue eram as intervenções mais comuns dos médicos. Não é por acaso que, nesta altura, o símbolo da prática médica não era a serpente de Esculápio mas sim o frasco necessário para a uroscopia. Estes métodos de diagnóstico tornaram-se bastante úteis visto que permitiam ao médico efectuar um diagnóstico à distância. Até porque, se um médico se deslocasse ao leito do enfermo, o médico cobraria quatro vezes mais do que com um diagnóstico à distância.


Os cirurgiões ocupavam o centro da pirâmide hierárquica e organizavam-se em colégios cuja estrutura se assemelhava a uma faculdade de medicina, mas sem pertencer a ela. Eles só deveriam operar depois da ordem de um “doutor”, porém, na maioria dos casos, eles agiam autonomamente, tratando grandes camadas da população. O tempo de estudo era entre 8 a 12 anos e a entrada no ofício era apenas permitida pela concessão de uma licença dada pelo governo que era válida em todo o país (isto para o caso da França). O cirurgião era responsável por tratar todo o ramo da ortopedia, efectuar curativos em todo o tipo de feridas, era anestesista e também amputava membros, se necessário. Alguns praticavam também cirurgias oculares, extirpação do cálculo renal e cirurgias a hérnias.

Na zona mais rural, cada campo tinha o seu barbeiro e o seu cirurgião. Não raro surgiam dúvidas no que diz respeito às competências de cada um. A um barbeiro, por exemplo, era autorizada a realização de sangrias, faziam curativos em ferimentos e arrancavam dentes com cáries.

Por outro lado, no fundo da pirâmide hierárquica figuravam os mestres banhistas que pertenciam às classes sociais inferiores e era equiparado ao torturador, ao abatedor de cães e ao coveiro. Apesar de tudo, as termas eram extremamente populares na Idade Média. Isto porque comida, bebida, música e outros prazeres faziam parte da visita a um balneário. Não é por acaso que se acusavam os mestres banhistas de favorecimento à prostituição. A cultura dos banhos estava porém destinada ao seu fim quando em 1500 o perigo da sífilis encerrou a actividade.

As parteiras figuravam, em estatuto social, ao lado dos mestres banhistas e eram suspeitas de feitiçaria. Segundo o manifesto da caça às bruxas, o Martelo das feiticeiras, ninguém era tão prejudicial à fé católica como essas mulheres que lidavam com práticas mágicas. No fim da Idade Média a parteira surgiu como funcionária pública conhecida por outra denominação, “guardiã dos partos”. Além de actuar como parteira, ela também teria de ser a testemunha oficial do tudo o que acontecia em torno do nascimento. Porém, só no início da Idade Moderna é que as parteiras tiveram direito a figurar na literatura médica.


Finalmente, existiam os curandeiros que pertenciam a uma facção obscura da medicina na Idade Média. Estes praticavam a cura em feiras e mercados, oferecendo remédios milagrosos. Apesar de muito mal vistos pela sociedade, muitos deles tinham um conhecimento efectivo na área da saúde e tinham reais competências para curar maleitas. Alguns médicos oficiais chegaram a confiar-lhe tarefas complexas como extracções de cálculos renais, operações a hérnias inguinais e cirurgias às cataratas.

Algo, porém, que era comum a qualquer segmento da estrutura hierárquica da medicina era a relação com o divino. Antes de efectuar alguma cura, tanto o “profissional de saúde”, como o doente teriam que efectuar rezas para garantir o sucesso da intervenção, sendo o tratamento atribuído ao médico, mas a cura a deus.

Baseado em REDDIG, Wolfgang. Os Diversos Ofícios da CuraScientific American Brasil - Especial História, [s.l.], nº 1, p. 58-61, [s.d.]. [Os praticantes da Medicina medieval.] 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

O julgamento de Galileu

Galileu Galilei foi julgado por heresia! Sim, é verdade. Contudo, será que conhecemos a fundo a história do julgamento de Galileu?

Na verdade, os registos do julgamento de Galileu existem e já foram estudados. O que aconteceu, muito simplesmente, é que Galileu, depois da acusação que lhe foi feita, apresentou um documento que provaria a sua inocência de forma conclusiva. Posto isto, o julgamento foi imediatamente suspenso. No entanto, no dia seguinte, Galileu confessou a sua culpa. Porquê?

Galileu Galilei

O julgamento de Galileu é semelhante ao julgamento por crimes de guerra do general japonês Hideki Tojo, a seguir à Segunda Grande Guerra. O plano americano era o de retratar o imperador Hirohito como ignorante correia de transmissão dos poderosos senhores da guerra japoneses. Ora, o povo japonês fora endoutrinado a acreditar que existia para servir o imperador, símbolo máximo do Japão. Ao lançar as culpas dos crimes cometidos pelas forças armadas japonesas sobre os senhores da guerra, o imperador poderia escapar à responsabilidade, e os americanos poderiam governar o Japão através dele.

Hideki Tojo

Meio século depois, existem dados suficientes para demonstrar que Hirohito tinha conhecimento e dava a sua aprovação ao que o exército fazia. Mas se estes dados tivessem chegado ao povo americano, este teria exigido que Hirohito fosse também ele julgado por crimes de guerra, deitando a perder o plano do poder americano.

No seu julgamento, Tojo comentou: "É claro que o imperador sabia o que nós, generais, andávamos a fazer." O tribunal foi então imediatamente suspenso. No dia seguinte, Tojo testemunhou que o imperador era mantido na ignorância relativamente aos crimes de guerra do exército. É quase certo que um advogado americano disse a Tojo que, se ele testemunhasse que o imperador sabia e aprovava os crimes de guerra, seria também ele julgado e seria provavelmente sentenciado à morte por enforcamento.

O que quer que dissesse, Tojo seria condenado, mas se testemunhasse que o imperador não sabia de nada, este salvar-se-ia. Tojo era japonês leal, ensinado a servir o imperador. Mentindo sob juramento, conseguiria proteger a quem tinha jurado proteger, o seu imperador.

Galileu, por seu lado, era um católico fundamentalista. Se um dominicano lhe dissesse em privado que a imagem da Igreja seria prejudicada se ele protestasse a sua inocência, confessar-se-ia culpado da acusação de heresia, a qual neste caso significava que desobedecera a uma ordem para não discutir a teoria de Copérnico.

Confessou-se culpado desta acusação menor e sofreu um esgotamento nervoso quando foi sentenciado a prisão domiciliária perpétua. À vista dos factos, todo o mundo teria sido mais bem servido caso ele tivesse provado a sua inocência. A importância da visão cristã do mundo para a ciência teria sido apreciada por todos.

Texto adaptado de "A Física do Cristianismo" de Frank J. Tipler

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O tempo

Ao longo dos séculos, muitas foram as diferentes formas de o humano estabelecer escalas temporais. Actualmente, os mais recentes relógios (os relógios atómicos) baseiam os seu funcionamento na transição entre dois estados do átomo de césio.

Estes dois estados são caracterizados pelas diferentes configurações dos seus electrões. Quando ocorre uma transição de configuração electrónica verifica-se a absorção ou emissão de radiação electromagnética com uma frequência que é função apenas da diferença de energia entre as duas configurações.

A frequência característica de uma transição de configuração electrónica é bem definida e pode ser utilizada como padrão para acertar um relógio. No caso dos relógios atómicos, a frequência mágica da transição no átomo de césio é de 9192631770 Hz (ou ciclos por segundo).


O relógio atómico produz um campo electromagnético variável que entra em ressonância com os átomos de césio quando a frequência do campo é exactamente igual à frequência mágica. É a partir desta sintonia que se pode medir a passagem do tempo.

Contudo, o átomo de césio não é mais do que uma forma humanamente conveniente para escalonar o tempo; não sendo, por isso, fundamental. Na verdade, sabemos que todos os átomos de césio foram criados por fusão nuclear no interior das estrelas e em supernovas, mas, antes de as primeiras estrelas se terem formado, há cerca de mil milhões de anos (medidos em tempo de césio!) o césio não existia. Parece contraproducente... E, na verdade, é!

Uma escala mais conveniente de tempo foi proposta no século XIX por Maxwell e Kelvin que propuseram a utilização da Segunda Lei da Termodinâmica para definir a escala de tempo. Visto que essa lei postula que a entropia do Universo só pode assumir valor nulo ou positivo e que num processo irreversível a entropia do Universo aumenta sempre, esta poderia ser uma elegante escala absoluta do tempo.

sábado, 3 de setembro de 2011

Por que a cola cola?

Quantas vezes nos perguntamos: Como funciona o processo de colagem de um material? O que, afinal, a cola tem de tão especial?

Na física e química dos materiais, as forças coesivas e adesivas são bastante importantes para a caracterização de um qualquer material. Contudo, apesar de ambas as palavras terminarem em -ivas, estas representam tipos de forças bem diferentes.

Num material, as forças coesivas são responsáveis pela consistência interna do mesmo. São estas forças que explicam as propriedades individuais dos materiais. Por outro lado, as forças adesivas são responsáveis pelo comportamento do material quando em contacto com outros materiais.


Estas últimas forças (adesivas) são as responsáveis pela adesão da cola à superfície de contacto. Apesar de existirem superfícies extremamente lisas, estas possuem fissuras microscópicas. Ora, a cola pode actuar como um agente enchedor dessas fissuras que, depois de endurecida, se fixa a esses poros.

Por outro lado, quando a porosidade da superfície é bastante reduzida, a ligação que se estabelece entre a cola e a superfície é química, o que pressupõe a criação de uma inter-fase (constituída por um composto químico diferente) entre a cola e a superfície.

Em último caso, as forças de Van der Waals (analisadas no post A física da osga) podem actuar como um forte adesivo, quando pequenas cargas electrostáticas com pólos opostos localizadas nas moléculas da superfície e da cola se atraem.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A física da osga

Todos nós ficamos impressionados com a capacidade da osga de contrariar a gravidade e escalar superfícies lisas — até mesmo um tecto liso — sem escorregar. Por que será tão fácil para a osga fazer isso?

A osga possui patas que funcionam como mãos que agarram as superfícies lisas com uma agilidade incrível. Na zona das patas (e dedos) existem protuberâncias com milhares de pêlos (cerdas), cada um com centenas da filamentos apenas visíveis com um microscópio óptico.


É aqui que a física da osga vêm ao de cima. Os filamentos microscópicos existentes em cada cerda contribuem para sustentar a massa da osga. Isto acontece devido às forças intermoleculares (entre as moléculas que constituem cada cerda e as moléculas que constituem a superfície em que a osga se desloca) denominadas forças de Van der Waals.

Apesar de estas forças serem mais fracas (em módulo) que as pontes de hidrogénio e as interacções dipolo-dipolo, a acção das forças de Van der Waals multiplicada pelos milhões de interacções com a superfície permitem sustentar a massa da osga, até mesmo quando circula de cabeça para baixo numa superfície de vidro.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O ovo das aves

As características únicas dos ovos das aves fazem com que muitos investigadores os chamem de embalagens impressionantes.

Muito embora tenha um aspecto maciço, a casca do ovo de galinha possui uma composição química rica em carbonato de cálcio (CaCO3) e chega a ter cerca de 8 mil poros microscópicos. A porosidade destes interstícios permite que o oxigénio (O2) penetre no ovo e o dióxido de carbono (CO2) saia do mesmo — trocas gasosas importantíssimas para uma conveniente respiração do embrião.

Contudo, ao longo do crescimento do embrião no interior do ovo, existe o perigo de infecções bacterianas. Por isso, além de servir como centro de trocas gasosas, a casca do ovo proporciona uma barreira física protectora de infecções.


Uma segunda linha de defesa física contra agressões exteriores é a clara do ovo, denominada albúmen. A clara corresponde a dois terços do volume total do ovo e é constituída maioritariamente por água (H2O). Todavia, possui uma viscosidade muito superior à água devido à existência de uma proteína chamada ovomucina que fornece coesão ao líquido. É o albúmen que protege o embrião dos impactos a que o ovo está sujeito ao longo do seu desenvolvimento.

Diversos investigadores pretendem imitar a estrutura do ovo para a elaboração de embalagens para frutas que as protejam simultaneamente contra impactos, bactérias e parasitas que comprometem a qualidade do produto. No entanto, a biomimética é uma ciência de elevado grau de dificuldade. Outro problema com que os investigadores se deparam é a sustentabilidade e ecologia do processo de criação de uma embalagem tão eficiente como o ovo.