sábado, 10 de setembro de 2011

Os diversos ofícios da cura


Na Idade Média, qualquer um que ficasse doente tinha à sua disposição um vasto leque de “especialistas” que se gabavam de serem conhecedores da arte de curar maleitas. Nesta época os médicos com formação académica eram largamente ignorados na hora de escolher quem haveria de curar determinada doença. Recorriam-se preferencialmente a barbeiros, cirurgiões ou parteiras que, pelo visto, tinham um sólido conhecimento prático sobre a matéria. Porém, além da concorrência destes “habilidosos”, os médicos com formação académica da época eram constantemente ameaçados pela concorrência de charlatães, enganadores e outros arrancadores de dentes itinerantes. Sebastian Brant, em 1494, descreveu esta situação em A nau dos insensatos: “O doente busca a saúde. De onde ela vem, pouco lhe importa.”

Os doentes da Idade Média queriam, mais do que tudo, uma cura rápida, mesmo que dolorosa, pois a sua sobrevivência dependia disso. Estamos a falar de uma época em que sistemas de Assistência Social eram grosso modo inexistentes e, por isso, o trabalhador, qualquer que fosse a sua especialidade, tinha que ficar curado o mais rápido possível para ganhar a sua vida e não morrer de fome. A promiscuidade e a falta de higiene existente dentro das casas e das muralhas das cidades na Idade Média favoreciam o aparecimento de epidemias que se tornaram frequentes nesta época. Se, por um lado, a cidade tornava os trabalhadores mais livres do que no campo (porque tinham menos obrigações fiscais e menores obrigações laborais perante o governo), por outro, as cidades também deixavam os trabalhadores mais doentes.

Só no início do século XIV, com o crescimento das cidades, os magistrados começaram a estruturar um sistema de saúde propriamente dito. Ou seja, assim como a vida pública era regulamentada por leis comerciais e regras corporativas, os cidadãos também achavam necessário que a medicina fosse exercida apenas por profissionais.

As pessoas que eram consideradas aptas a realizar a actividade médica pertenciam a classes sociais bastante distintas. Por exemplo, no alto da pirâmide hierárquica, figurava o médico distrital que estava encarregado de cuidar do bem-estar da comunidade. Tratava-se de um doctor medicinae, ou seja, alguém que estudou os clássicos de medicina antigos ou os mais recentes livros árabes nas grandes universidades (Bolonha, Pádua, Montpellier ou Paris). Estes eram muitas vezes equiparados à nobreza.


Por outro lado, os médicos funcionários eram pessoal pago pelas cidades mercantes que se comprometiam a cuidar do bem comum, controlar as farmácias (para que elas apenas fornecessem remédios eficazes), regular os estabelecimentos públicos reservados para banhos (para prevenir a propagação de doenças), avaliar os pacientes e decidir sobre a necessidade de os levar para um hospício. Estes médicos serviam para que os grandes comerciantes das cidades mercantes pudessem mostrar que, assim como os reis e os bispos, também eles dispunham de um médico próprio.

Porém o ofício de médico trazia consigo pesadas desvantagens. Uma delas é que ele nunca poderia deixar a cidade sem autorização. Além disso, muito médicos morriam no exercício da sua profissão. De nada lhes valia todo o seu equipamento contra uma epidemia como a Peste Negra, por exemplo, que matou um terço da população europeia entre 1348 e 1352.

Para um médico da época, as doenças apareciam devido a um desequilibro entre os quatro principais humores corporais, e era sua responsabilidade reequilibrá-los. Por exemplo, para curar males do humor negro, o médico utilizava remédios considerados quentes e húmidos visto que se considerava que esse humor negro era frio e seco.

Os exames à urina e ao sangue eram as intervenções mais comuns dos médicos. Não é por acaso que, nesta altura, o símbolo da prática médica não era a serpente de Esculápio mas sim o frasco necessário para a uroscopia. Estes métodos de diagnóstico tornaram-se bastante úteis visto que permitiam ao médico efectuar um diagnóstico à distância. Até porque, se um médico se deslocasse ao leito do enfermo, o médico cobraria quatro vezes mais do que com um diagnóstico à distância.


Os cirurgiões ocupavam o centro da pirâmide hierárquica e organizavam-se em colégios cuja estrutura se assemelhava a uma faculdade de medicina, mas sem pertencer a ela. Eles só deveriam operar depois da ordem de um “doutor”, porém, na maioria dos casos, eles agiam autonomamente, tratando grandes camadas da população. O tempo de estudo era entre 8 a 12 anos e a entrada no ofício era apenas permitida pela concessão de uma licença dada pelo governo que era válida em todo o país (isto para o caso da França). O cirurgião era responsável por tratar todo o ramo da ortopedia, efectuar curativos em todo o tipo de feridas, era anestesista e também amputava membros, se necessário. Alguns praticavam também cirurgias oculares, extirpação do cálculo renal e cirurgias a hérnias.

Na zona mais rural, cada campo tinha o seu barbeiro e o seu cirurgião. Não raro surgiam dúvidas no que diz respeito às competências de cada um. A um barbeiro, por exemplo, era autorizada a realização de sangrias, faziam curativos em ferimentos e arrancavam dentes com cáries.

Por outro lado, no fundo da pirâmide hierárquica figuravam os mestres banhistas que pertenciam às classes sociais inferiores e era equiparado ao torturador, ao abatedor de cães e ao coveiro. Apesar de tudo, as termas eram extremamente populares na Idade Média. Isto porque comida, bebida, música e outros prazeres faziam parte da visita a um balneário. Não é por acaso que se acusavam os mestres banhistas de favorecimento à prostituição. A cultura dos banhos estava porém destinada ao seu fim quando em 1500 o perigo da sífilis encerrou a actividade.

As parteiras figuravam, em estatuto social, ao lado dos mestres banhistas e eram suspeitas de feitiçaria. Segundo o manifesto da caça às bruxas, o Martelo das feiticeiras, ninguém era tão prejudicial à fé católica como essas mulheres que lidavam com práticas mágicas. No fim da Idade Média a parteira surgiu como funcionária pública conhecida por outra denominação, “guardiã dos partos”. Além de actuar como parteira, ela também teria de ser a testemunha oficial do tudo o que acontecia em torno do nascimento. Porém, só no início da Idade Moderna é que as parteiras tiveram direito a figurar na literatura médica.


Finalmente, existiam os curandeiros que pertenciam a uma facção obscura da medicina na Idade Média. Estes praticavam a cura em feiras e mercados, oferecendo remédios milagrosos. Apesar de muito mal vistos pela sociedade, muitos deles tinham um conhecimento efectivo na área da saúde e tinham reais competências para curar maleitas. Alguns médicos oficiais chegaram a confiar-lhe tarefas complexas como extracções de cálculos renais, operações a hérnias inguinais e cirurgias às cataratas.

Algo, porém, que era comum a qualquer segmento da estrutura hierárquica da medicina era a relação com o divino. Antes de efectuar alguma cura, tanto o “profissional de saúde”, como o doente teriam que efectuar rezas para garantir o sucesso da intervenção, sendo o tratamento atribuído ao médico, mas a cura a deus.

Baseado em REDDIG, Wolfgang. Os Diversos Ofícios da CuraScientific American Brasil - Especial História, [s.l.], nº 1, p. 58-61, [s.d.]. [Os praticantes da Medicina medieval.] 

4 comentários:

  1. Quem entrar neste blog,é como estar numa aula de história. Parabéns Dani.

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  2. Muito obrigado.
    É um gosto saber que o meu blog é apreciado.

    Um grande abraço!

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  3. Gosto muito. Obrigada pela partilha

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  4. Grato pelo reconhecimento e apreciação.

    Cumprimentos!

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